‘Faraó dos bitcoins’ tinha caderno para realizar contabilidade bilionária à mão

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imagem29-10-2021-10-10-32 Reprodução ‘Faraó dos bitcoins’ tinha caderno para realizar contabilidade bilionária à mão

Em um período de seis anos, a  GAS Consultoria, empresa do ex-garçom Glaidson Acácio dos Santos — preso desde o fim de agosto e réu, ao lado de outros 16 comparsas, por crimes contra o sistema financeiro nacional, entre outros delitos —, movimentou o exorbitante montante de R$ 38 bilhões, conforme consta em documentos fornecidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) à Polícia Federal (PF) e ao Ministério Público Federal (MPF).

Contudo, apesar de ter captado junto aos clientes um valor que chega a superar o Produto Interno Bruto (PIB) de vários países, o grupo mantinha métodos arcaicos no controle de suas finanças.

A precariedade era tanta que, durante a Operação Kryptos, que desbaratou a organização, agentes chegaram a apreender, na sede da empresa, em Cabo Frio, na Região dos Lagos, um caderno de anotações escrito à mão com informações como nome, CPF ou CNPJ e tamanho do aporte feito por cada investidor.

No papel margeado, similar a qualquer material escolar antigo e reproduzido na denúncia contra a quadrilha, obtida pelo Globo, eram oficializados até mesmo repasses superiores a R$ 300 mil. Para os investigadores, a ausência de requinte contábil não se dava ao acaso.

Os policiais e promotores acreditam que a empresa de Glaidson, conhecido como “faraó dos bitcoins”, adotava como estratégia a falta de clareza ao atuar para mascarar o fato de que, ao contrário do que assegurava aos interessados no lucro garantido de 10% ao mês, muito maior do que o de qualquer outra aplicação legítima disponível no mercado, os rendimentos não eram oriundos de investimentos em critptomoedas.

“A GAS Consultoria prometia rendimento fixo com investimento exclusivo em bitcoin, mercado de altas volatilidade e risco; todavia, não fazia valer a escolha do investidor, ao aplicar suas economias em outros investimentos diferentes daquele escolhido”, pontua a denúncia oferecida pelo Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPF.

O texto prossegue: “Ademais, o grupo GAS não disponibilizava informações claras sobre o retorno e as possibilidades (riscos) desse retorno vir a não se concretizar. Também não foi encontrada nenhuma documentação comprobatória do investimento em criptomoedas, como garantia de que a vontade do investidor estava sendo respeitada”.

Em seguida, os promotores citam uma nota de esclarecimento divulgada ao público pela GAS quando as suspeitas relativas às atividades da empresa já começavam a se tornar públicas.

Na ocasião, o grupo argumentou que conseguia honrar o compromisso fixo de 10% ao mês por se tratarem de operações com criptoativos e por uma suposta “vasta expertisesetup operacional adequado e um mindset equilibrado”. O uso de expressões vagas, muitas delas em inglês, reforçou a suspeita de clandestinidade do negócio.

“Os termos da nota não esclarecem absolutamente nada sobre as aplicações financeiras e se destinam a dar aparência de legalidade ao logro mantido pela empresa”, assegura a denúncia, que, em um trecho mais a frente, acrescenta: “A GAS controlava os valores que o capital de cada cliente supostamente rendia por dia sem nenhum documento que ateste a realização de qualquer transação com criptomoedas ou contabilize os valores de aportes e rendimentos”.

O MPF afirma também que, “ao contrário das informações públicas lançadas pela GAS Consultoria para enganar e manter em erro seus investidores”, há outras provas que “revelam os meandros das operações realizadas no interior da empresa, longe das vistas” dos clientes.

Os promotores mencionam, por exemplo, ligações captadas com autorização da Justiça que indicariam “a variedade de outros investimentos realizados pela GAS Consultoria fora do contrato” e o vasto conjunto de pessoas físicas ou jurídicas empregadas pela empresa para movimentar recursos.

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As conversa envolvem Michael de Souza Magno, conhecido como “corretor das celebridades” por ter vendido imóveis a vários famosos, preso desde o dia 13 de outubro, e dois homens não identificados. No primeiro diálogo, Michael diz ao interlocutor que os valores transacionados são “derretidos para virar dinheiro”, porque “o governo pode congelar tudo”.

Em seguida, ele acrescenta que não recebe nada diretamente das contas da GAS ou de Glaidson: “Passa por várias pessoas, é pago pela imobiliária dele, pela empresa de pagamentos, pela produtora, feito por várias contas diferentes”.

O corretor chega a reconhecer que o grupo tem consciência da ilegalidade das próprias atividades: “Tem que infelizmente passar por isso mesmo, até a gente se regulamentar 100% com a CVM”. Trata-se da sigla da Comissão de Valores Mobiliários, responsável por fiscalizar o setor no Brasil e órgão no qual a empresa não tinha — nem tentou ter, até onde se sabe — qualquer registro.

Na outra conversa, Michael dá mais detalhes das operações: “Ele (Glaidson) tem sessenta pessoas que ele usa CNPJ, CPF e tudo pra poder não ter vínculo”. O corretor revela ainda que o grupo criou uma corretora de criptoativos própria no exterior para facilitar as transações: “Foi aberta lá no Uruguai com o pastor da igreja que é amigo dele”.

Por fim, Michael confirma que, embora garanta aos clientes que os lucros são advindos de compra e venda de criptomoedas, a empresa atua de modo diferente na prática.

“Trinta por cento do dinheiro que paga os investidores é de bitcoin. Os outros de outros negócios. Ele tem euro”. O interlocutor responde, surpreso: “Ele não tem só a cripto?” O corretor demonstra, então, receio sobre os rumos do diálogo: “Não sei como é com os telefones”. Mas, mesmo assim, começa a enumerar supostos investimentos de Glaidson, como participação em portos e até importação e exportação de carros. “Leva via criptomoeda e desembaraça no meio do porto pra não ter imposto, entendeu?”, explica.

Acusado de homicídio

Na última quarta-feira, Glaidson foi indiciado pela Polícia Civil como mandante do atentado contra Nilson Alves da Silva, de 44 anos, ocorrida em Cabo Frio em março de 2021.

Para a 126ª DP (Cabo Frio), responsável pelas investigações sobre o caso, o ex-garçom encomendou a morte do concorrente, que também trabalhava com investimentos em criptoativos, depois que a vítima “espalhou a notícia” de que ele seria preso pela PF, aconselhando clientes a retirarem valores aportados junto à GAS Consultoria.


De acordo com a Polícia Civil, Glaidson determinou que Thiago de Paula Reis, “pessoa de sua extrema confiança”, contratasse os executores do crime. A proximidade entre os dois é reforçada por uma visita feita por Thiago ao patrão na cadeia, poucos dias após a prisão.

Após receber a ordem, Thiago negociou com Rodrigo Silva Moreira, Fabio Natan do Nascimento, Chingler Lopes Lima e Rafael Marques Gonçalves Gregório para que cometessem o assassinato.

Fabio e Chingler também são acusados pela morte do investidor Wesley Pessano Santarém, em agosto, na cidade vizinha de São Pedro da Aldeia, também na Região dos Lagos. O rapaz, de 19 anos, foi executado em um Porsche avaliado em R$ 440 mil. Segundo a Polícia Civil, as investigações prosseguem para identificar se Glaidson também foi o mandante do assassinato de Pessano, que se apresentava nas redes sociais como investidor de criptomoedas.

Fonte: ULTIMOSEGUNDO.IG.COM.BR