Dez anos da única primavera dos países árabes

Tunisianos se manifestam em apoio a Mohamed Bouazizi, 15 de janeiro de 2011Tunisianos se manifestam em apoio a Mohamed Bouazizi, 15 de janeiro de 2011| Foto: Antoine Walter – WikiMedia CommonsOuça este conteúdo

O último dia 14 de janeiro marcou uma década desde a derrocada do ditador tunísio Zine El Abidine Ben Ali, mais conhecido apenas como Ben Ali. Dez anos da primeira das revoluções e revoltas populares que ganharam o nome de “Primavera Árabe” jornais mundo afora. E claro que essa data marcante estará presente em diversos meios de comunicação e na escrita de muitos colunistas sobre política internacional, como esse. Os outros países podem ficar para depois, com textos dedicados, mas uma pergunta sempre vem à mente: a tal da “Primavera Árabe” deu certo? Na Tunísia, sim. E talvez tenha explicação.

O termo “Primavera Árabe” em si é um problema. Tenta correlacionar eventos no século XXI que ocorrem em Estados nacionais árabes de maioria muçulmana e recém-independentes com eventos de 1848, ocorridos em regiões da Europa onde justamente ainda não existia o Estado nacional, mas dinastias e soberanos por “direito divino”, com a presença do cristianismo, em suas diversas vertentes. Ou, ainda, comparar com a onda de revoluções e independências que ocorreram no leste europeu entre 1989 e 1991, nos estertores da União Soviética. Ambas as comparações são descabidas, em contextos muito distintos, e geraram interpretações, e expectativas, errôneas sobre os países árabes em 2011.

Outro problema do termo é menos inocente. Em certas circunstâncias, saído da boca ou da escrita de integrantes do governo Obama, o termo tinha o propósito de cooptar os movimentos populares em diferentes países na direção de um modelo “ocidental”; leia-se, pró-EUA. Um fracasso retumbante, como pode-se atestar apenas por olhar ao redor. Talvez o maior problema do termo, entretanto, seja o seu tom generalista. “Primavera Árabe” coloca num mesmo rótulo os tunisianos que se levantaram contra a ditadura pró-Ocidente de Ben Ali, os agricultores sírios afetados pela seca que protestam contra a ditadura secular de Assad, a maioria xiita barenita oprimida por uma monarquia absolutista sunita e outra dezena de revoltas populares, todas distintas e próprias.

Sim, todos falantes de árabe e a maioria formada por muçulmanos, mas as semelhanças acabam aí. Falar em “mundo árabe” sem uma contextualização e sentido preciso é como pensar que uruguaios e guatemaltecos são a mesma população. Cada país possuía um contexto próprio em 2011, assim como particularidades sócio-culturais e também, importantíssimo frisar, despertavam diferentes interesses. Nos vizinhos, nas potências, na comunidade internacional como um todo. É necessária muita inocência, ao ponto da debilidade, para achar que o governo dos EUA agiria da mesma maneira em relação à Síria e em relação ao Bahrein, por exemplo. Ou que a Rússia teria posturas semelhantes em todos os países, e assim por diante.

Dignidade

Se os interesses e ações são distintos, não se trata do mesmo evento. Colocando os últimos parágrafos em termos mais brutos, “Primavera Árabe” é um slogan vazio que serve no máximo como marcador temporal. Na Tunísia, por exemplo, o termo utilizado é Revolução da Dignidade, al-karama. Seu estopim foi a auto-imolação de Mohamed Bouazizi, em 17 de dezembro de 2010. O rapaz, de 26 anos, era um vendedor de rua em Sidi Bouzid. Possuía um carrinho com frutas e bolos, sustentando sua mãe e irmãos mais novos. Segundo familiares, por anos ele sofreu com abuso de autoridades, que exigiam subornos ou confiscavam seus produtos.

No dia 17 de dezembro, após contrair uma dívida para compensar pela mercadoria apreendida, ele estava trabalhando de manhã. Por volta das 10:30, dois policiais, acompanhados de uma fiscal municipal, o assediaram como sempre. Um episódio que, convenhamos, não deve ser difícil de ser visto em qualquer cidade brasileira. Exigência de um alvará ali, ofertas de olhar para o outro lado acolá, ameaças veladas. Segundo testemunhas, a funcionária ofendeu Bouazizi e deu um tapa em seu rosto. Sua mercadoria foi apreendida, assim como sua balança eletrônica, para pesar as frutas. Indignado, o rapaz foi até a prefeitura, reclamar e reivindicar sua balança. Não foi atendido. Comprou um galão de gasolina, despejou o líquido no próprio corpo, no meio da rua, em frente à prefeitura. Teria gritado “como querem que eu sobreviva?” e ateou fogo ao próprio corpo.

Ele chegou a ser atendido e transferido para um hospital na capital. Foi visitado pelo próprio ditador antes de falecer no dia quatro de janeiro de 2011. Horas após seu ato de desespero, entretanto, protestos já haviam começado em sua cidade. A fiscal foi presa, para ser usada como bode expiatório. Não adiantou. Bouazizi, que segundo vizinhos não tinha interesse em política, apenas em sustentar sua mãe, sua irmã e jogar futebol, simbolizava toda uma geração que cresceu sob o signo de Ben Ali e cansou. Alto desemprego, corrupção, violência estatal, polícia secreta, censura, todos os elementos que costumam fazer parte de uma ditadura. Os protestos tomaram Sidi Bouzid e se espalharam pelo país, convocados por centrais sindicais que também organizaram greves gerais.

A internet teve um papel central nos protestos. Circulavam em grupos tunisianos as centenas de documentos sobre o país publicados no site Wikileaks, mostrando a corrupção em diversos níveis do Estado. Nos mesmos grupos, os cidadãos se organizaram, uma ferramenta que a polícia secreta tunisiana não estava muito preparada para combater. O governo, obviamente, usou da força para se manter e reprimir as manifestações e as greves. O número oficial é de 338 mortos e mais de dois mil feridos como consequência direta da violência política, num período de menos de um mês. O governo tinha o discurso canalha de sempre: maus cidadãos, falta de patriotismo, ações estrangeiras para desestabilizar o país.

Fuga e sucesso

No dia 14 de janeiro, Ben Ali declarou estado de emergência, ordenou o fechamento de escolas, universidades, do espaço aéreo nacional e fugiu. Primeiro para Malta. De lá, iria para a França, que rejeitou recebê-lo. Restou pedir asilo na Arábia Saudita, um país conhecido pelo seu desrespeito aos direitos humanos e dos cidadãos. O exército, felizmente, ficou do lado da população e nenhum militar tentou tomar para si o protagonismo da mudança política. Assumiram interinamente o poder, que foi repassado ao parlamento.

Eleições foram organizadas e, no processo, o exército prendeu integrantes ainda leais ao ditador, como os integrantes da polícia secreta, agora extinta. Ainda em 2011 foi eleita uma assembleia constituinte, com uma nova constituição, adotada em 2014, democrática e com representatividade feminina. Da organização dos protestos ao diálogo para a nova constituição, quatro organizações foram importantes, o “Quarteto do Diálogo”. A central sindical União Geral Tunisiana do Trabalho, a Confederação Tunisiana da Indústria, Comércio e Artesanato, a Liga Tunisiana para a Defesa dos Direitos Humanos e Ordem dos Advogados da Tunísia. Coletivamente, o quarteto foi laureado com o Nobel da Paz em 2015.

Hoje, a Tunísia é, sem dúvida e de longe, um país melhor do que era antes de Ben Ali. E, talvez, seja o único país da “Primavera Árabe” em que pode-se afirmar isso categoricamente, sem receio, sem muito debate. Existe algum segredo? Ou alguns segredos? As lições principais da Revolução da Dignidade tunisiana talvez sejam duas. Primeiro, o fato das forças armadas terem se comprometido com uma revolução para a democratização do país e mantido esse compromisso. O próprio Ben Ali era um militar que chegou ao poder via um golpe. Segundo, e talvez o principal. O leitor talvez tenha notado a ausência de referências a outros países. Foi uma revolução conduzida por tunisianos, para tunisianos, com o sacrifício de tunisianos. Sem intervenções estrangeiras, sem disputas de interesses maiores. Apenas pessoas buscando uma sociedade melhor para chamar de sua.

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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, professor de política internacional, roteirista do canal Nerdologia e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.veja + em Filipe FigueiredoDeixe sua opiniãoEncontrou algo errado na matéria?comunique errosSobre a Gazeta do PovoxSobre a Gazeta do Povo

Fonte: GAZETADOPOVO.COM.BR