A morte do falcão

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Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos EUA, em entrevista coletiva em 6 de janeiro de 2004Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos EUA, em entrevista coletiva em 6 de janeiro de 2004| Foto: EFE/EPA/Shawn ThewOuça este conteúdo

No dia do 100º aniversário do Partido Comunista Chinês, o embaixador da China no Brasil acordou e foi para o Twitter comemorar a morte do ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, aos 88 anos, vítima de um mieloma múltiplo. Aquele que foi o seu primeiro post do dia dizia o seguinte: “O Partido Comunista da China não viverá até os 100 anos de qualquer maneira, enquanto eu viver — disse que sim Donald Rumsfeld, o ex-secretário de Defesa dos EUA, que morreu aos 88 anos nesta quarta-feira (30).” Somente 31 minutos depois, Yang Wanming se manifestou sobre a efeméride do seu partido.

Rumsfeld é o homem da “Guerra ao Terror” e as consequentes invasões do Afeganistão e Iraque. Por causa disso é controverso e até odiado. Mas nem tudo que ele fez foi ruim. Está aí o post do embaixador Yang para confirmar. Se a China celebrou a morte do ex-secretário, é evidência inconteste de que a lista de coisas boas que Rumsfeld fez passa pela atenção aos malfeitos do regime chinês.

Não achei em lugar algum a declaração que o embaixador chinês atribui ao ex-secretário de Defesa americano. Mas a busca por ela me apontou para uma série de outras que indicam a razão de a China celebrar a sua morte.

Em 2005, Rumsfeld irritou Pequim ao perguntar publicamente “Uma vez que nenhuma nação ameaça a China, deve-se perguntar: Por que esse investimento crescente? Por que essas compras grandes e contínuas de armas seguem em expansão?”

A pergunta aparentemente inocente levou um dos diretores do Ministério das Relações Exteriores da China a fazer uma confissão. Cui Tiankai, que atualmente é embaixador da China nos Estados Unidos (vejam só) disse o seguinte naquele longínquo 2005: “Você realmente acredita que a China não está sob a ameaça de outros países? Você realmente acredita que os Estados Unidos não estão ameaçados pelo surgimento da China?”.

Boom! O regime acabava de assumir o que era óbvio no Pentágono, mas diplomatas e burocratas se negavam a reconhecer. A China estava se preparando não só para impor por meio da força seus interesses regionais, mas para fazer frente aos Estados Unidos e, se fosse o caso, impor por meio da força os seus interesses onde quer que fosse necessário.

O mantra de Rumsfeld, de que havia uma tendência no planejamento militar de confundir o desconhecido com o improvável, se confirmava. Quem em sã consciência imaginaria a emergência de uma potência militar para voltar a colocar o poder em disputa, no pós-Guerra Fria? Enfim, graças a Rumsfeld, o embaixador Cui acabava de inaugurar a Guerra Fria 2.0.

Pouca gente prestou atenção, entre eles estava o falcão Rumsfeld.

Enquanto os Estados Unidos perdiam vidas de seus soldados, torravam uma fortuna de seu orçamento e via sua imagem como potência ser desgastada pelas guerras no Iraque e Afeganistão, a China confessava que se preparava para uma outra guerra. E depois de anos de erros no Afeganistão e Iraque, Rumsfeld talvez tivesse aprendido que guerra não era mais um conceito no singular. Há guerras dentro de guerras e guerras tão absolutamente improváveis, que mesmo um obcecado pelo improvável como ele era, não foi capaz de prever que naqueles campos de batalha em que seus soldados lutavam contra o Terror, o improvável era o maior inimigo.

Muito do fracasso de Rumsfeld (e sinceramente não acho que possa ser atribuído somente a ele) se deu por causa da constante batalha entre formas de abordagem em conflitos travados em um mundo fluido em que a insurgência iraquiana e afegã se revelaram altamente proficientes.

Muito do sucesso de Rumsfeld, entretanto, vem desses fracassos. Ele apontou para os militares americanos um mundo de incertezas e por mais que possa parecer inacreditável, enquanto o mundo fora daquelas cinco linhas do Pentágono acreditava que a vida de Rumsfeld se resumia à Guerra ao Terror, o falcão martelava na cabeça dos generais a necessidade de se preparar para um futuro caótico que emergia no Oriente.

Nesta semana, Xi Jinping avisou que quem resolver intimidar a China, inclusive belicamente, vai acabar “batendo a cabeça contra uma Grande Muralha de aço, forjada com o sangue e os corpos de mais de 1,4 bilhão de chineses”.

A declaração de Cui Tiankai, em 2015, não foi inocente. Os chineses já sabiam que podiam abrir o jogo, pois o Ocidente nunca leva a sério. Costuma se dar conta dos problemas quando atinge um ponto crítico ou, muitas vezes, de não retorno.

O embaixador Yang Wanming comemorou a morte de Rumsfeld porque quanto menos homens como ele no mundo fica mais fácil a estratégia do Partido Comunista Chinês.

Em 2017, vi Rumsfeld atravessando o salão de um clube em Washington, D.C. Por coincidência, caminhávamos em direções opostas. Eu o cumprimentei. Ele parou, estendeu a mão e me saudou. Perguntou meu nome. Respondi e disse que era jornalista, mas que não se preocupasse, pois não estava pedindo uma entrevista apenas desejando-lhe uma boa tarde. Ele usava um terno azul marinho com marcas do tempo e uma gravata amarela com estampas que não me recordo bem. Rumsfeld foi gentil. Sorriu, bateu em meu braço e seguimos em direções diferentes. Somente no dia de sua morte, escrevi no Twitter ter saído daquele encontro fortuito com a sensação de ter recebido um aperto de mão de um dos homens que ajudaram a escrever as páginas iniciais deste século.

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Leonardo Coutinho

Jornalista, autor do livro “Hugo Chávez, o espectro”, pesquisador e comentarista sobre segurança e relações internacionais. Escreve semanalmente, desde Washington, D.C. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.veja + em Leonardo CoutinhoDeixe sua opinião

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