Leonardo Sá/Agência SenadoCongresso não vota LDO, mas aumenta o Fundo Eleitoral para R$ 4,9 bilhões. Enquanto isso, EUA enfrentam shutdown por não aprovarem orçamento
A diferença é gritante e a distância que separa as duas situações é quilométrica. De um lado está o Congresso dos Estados Unidos. Do outro, o Parlamento brasileiro. Atenção! A intenção, aqui, não é discutir diferenças políticas e ideológicas entre as duas instituições nem analisar o relacionamento de cada uma delas com os demais poderes de seus respectivos países.
O que está em debate é o comportamento do Poder Legislativo diante de um dos mais importantes papéis reservados para ele tanto pela lei americana quando pela brasileira. Esse papel é o de dar a palavra final sobre o orçamento e os critérios para o gasto do dinheiro do povo. Nesse quesito, com todas as imperfeições que pode haver no país norte-americano, o placar está pelo menos 7 a 1 para os Estados Unidos.
Falemos, primeiro, do caso brasileiro. Na terça-feira da semana passada, 30 de setembro, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso, que reúne trinta deputados e dez senadores, decidiu, mais uma vez, adiar a votação do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que orientará os gastos federais em 2026.
A agilidade, que tem faltado em relação a essa pauta fundamental para a sociedade, sobra quando a questão diz respeito aos bolsos dos políticos. No mesmo dia em que adiaram a votação da LDO, os membros da Comissão deixaram claro que empurrarão goela abaixo da sociedade uma conta indigesta, de pelo menos R$ 4,9 bilhões.
Ela chegará na forma do Fundão Eleitoral, que irrigará com dinheiro do povo as campanhas eleitorais do ano que vem. Os membros da Comissão também disseram que, para 2026, exigirão outras regalias. Entre elas, a que dá à execução das emendas parlamentares — uma bolada que, no próximo ano, deverá alcançar quase R$ 60 bilhões — preferência em relação a todas as demais despesas da União. Como sabem que o dinheiro federal anda curto para tanta despesa, querem assegurar que o deles esteja garantido. Afinal, como diz o ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro” .
O orçamento é, por definição, a peça mais importante de qualquer administração e diz respeito a todos os setores da atividade pública — mas parece que apenas as rubricas de interesse dos parlamentares. são tratadas como prioridade. É ele que alimenta os programas propostos pelo governo e define os critérios de distribuição do dinheiro dos impostos que o Estado arrecada da sociedade.
Elaborado inicialmente pelo Executivo com base na previsão de receitas para o exercício seguinte, a LDO é submetida ao Legislativo, que, dentro dos limites definidos em lei, pode alterá-la da forma que julgar mais conveniente. Depois de aprovada, essa Lei orienta a elaboração do Orçamento Geral da União, que deve ficar pronto antes do início do próximo exercício — ou seja, até o dia 31 de dezembro de 2026.
Esse prazo, no entanto, raramente é respeitado. O orçamento para 2025, por exemplo, só foi aprovado no dia 30 de março. Ou seja, o país passou três dos doze meses do ano pagando as despesas da máquina pública com base no orçamento do ano anterior. E este ano? Será que Suas Excelências encararão com mais seriedade a obrigação de cuidar de uma lei tão importante? Pelo andar da carruagem, isso parece pouquíssimo provável.
A previsão original para 2026 é de uma receita líquida de R$ R$ 2,57 trilhões e uma despesa primária de R$ 2,6 trilhões — além de um crescimento de 2,44% do PIB e uma inflação de 3,6%. Feitas as contas e definidos os critérios de gastos, a expectativa do governo é de um resultado fiscal positivo de R$ 34,5 bilhões — o que equivale a 0,25% do PIB. Só tem um problema: a possibilidade desse resultado ser alcançado em ano eleitoral, como será 2026, é mais do que remota.
Pelo que se vê, o cenário fiscal para o próximo ano não é dos mais animadores — e a população pode se preparar para as consequências desse desarranjo orçamentário que, como o brasileiro está cansado de saber, tem reflexos na inflação, na taxa de câmbio e, claro, nos juros. Pior: a previsão crescente de gastos, as promessas de isenções tributárias populistas (até despesas com pets, com a contratação de personal trainers e com viagens ao exterior eles querem livrar dos impostos) e o anúncio de mais gastos indicam que o governo pode até prometer superávit, mas não parece disposto a permitir que ele aconteça.
Tudo indica que o Congresso, que a princípio seria o responsável por impedir o déficit, fará tudo o que estiver a seu alcance para evitar que sobre algum dinheiro no caixa federal no final do próximo ano.
Shutdown
A proposta do governo sobre os gastos do próximo ano foi elaborada pelo Ministério do Planejamento e entregue à Comissão de Orçamento no dia 15 de abril. Desde então, está sob análise do relator, deputado Gervásio Maia (PDB). A votação do texto final, que deveria ter acontecido no primeiro semestre, agora está prevista para a próxima terça-feira. Ou seja, depois de amanhã. Isso, naturalmente, se Suas Excelências não encontrarem uma desculpa qualquer para continuar empurrando com a barriga uma tarefa que, por imposição constitucional, deveriam ter cumprido no primeiro semestre.
De acordo com o que diz a Carta, enquanto os parlamentares não votarem a LDO, não podem sair para o recesso de meio do ano. Por mais claro que tenha sido, o constituinte que propôs essa lei não contava com a astúcia de políticos como os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil).
Para driblar a proibição de dar férias para os parlamentares antes de cumprir esse dever, a dupla apelou para um expediente conhecido como “recesso branco”em que fizeram de conta que estavam trabalhando quando, na verdade, estavam de pernas para o ar. Até aí, tudo bem: o Brasil está cansado de ver os políticos adaptarem as obrigações às suas conveniências pessoais e esse foi apenas mais um exemplo dessa prática. A questão é: onde está a diferença gritante mencionada no início deste texto?
Bem… no mesmo dia em que os parlamentares brasileiros tomaram a decisão de adiar por mais alguns dias a votação da LDO, o Congresso dos Estados Unidos também discutia o orçamento federal americano — e mostrava porque as instituições de seu país são mais sérias do que as brasileiras. Eles discutiram até o último momento sem, no entanto, chegarem a qualquer acordo.
Por lá, o ano fiscal se inicia no dia 1º de outubro e vai até o dia 30 de setembro do ano seguinte. Ao contrário do que acontece no Brasil, onde a falta de acordo sobre os detalhes do orçamento não gera qualquer tipo de consequência, por lá a falta de acordo leva à paralisia de boa parte dos serviços públicos. Isso mesmo. Se o orçamento não estiver fechado no dia 30 de setembro, algumas atividades simplesmente deixam de ser executadas por falta de verba.
Nos últimos 50 anos houve 13 situações de shutdown — palavra que significa paralisação ou desligamento e que, nesse caso específico, diz respeito ao corte de verbas para serviços públicos não essenciais. Enquanto os parlamentares não chegam a um acordo, tarefas como a emissão de passaportes e de vistos, a inspeção de alimentos, a administração dos programas sociais, a administração dos parques federais e outras atividades consideradas secundárias no serviço público simplesmente deixam de ser oferecidas à população.
Situação impensável
Funcionários federais considerados “não essenciais” são afastados, sem direito a salários. De acordo com as análises do mercado de trabalho, se o atual shutdown se estender por mais duas ou três semanas, a taxa de desocupação, que foi de 4,3% em agosto, pode chegar a 4,7% caso os funcionários afastados passem figurar como desempregos temporários. (A estimativa é da agência Bloomberg).
O pomo da discórdia, desta vez, foram os gastos federais com saúde e a falta de acordo em torno de programas que receberam recursos vultosos nas administrações democratas de Barak Obama e, depois, de Joe Biden. De forma superficial, pode-se dizer que os parlamentares republicanos, que controlam a Câmara e o Senado, mas não controlam todas as comissões das casas, defendem que não haja uma mudança drástica nos critérios de gastos definidos por Donald Trump — e que são mais austeros em relação a gastos federais do que desejam os democratas.
Sem acordo, os serviços considerados não essenciais tiveram seus recursos cortados a partir da zero hora da quarta-feira passada.
Uma situação como essa é impensável no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos o atraso na elaboração do orçamento é exposto para sociedade da forma mais eloquente e desagradável possível, no Brasil os parlamentares sempre encontram um jeito de acochambrar a situação e justificar a própria omissão.
O interessante é que, enquanto por lá o desentendimento é motivado pela definição das prioridades no destino do dinheiro público, no Brasil todos os partidos — da esquerda, da direita ou do centro — se unem na hora de assegurar que os recursos federais continuem a serviço de seus interesses.
Até o momento, uma das poucas decisões seguras a respeito dos gastos discricionários para 2026 — ou seja, sobre a pequena parte do orçamento que não está comprometida com o pagamento das despesas obrigatórias — é a consta da Instrução Normativa aprovada na Comissão de Orçamento na terça-feira passada. Ela não diz respeito a programas essenciais para a população, mas ao financiamento das campanhas eleitorais. A proposta original, elaborada pelo Poder Executivo, previa destinar R$ 1 bilhão para o o financiamento das campanhas eleitorais — atividade que, em democracias sérias, é bancada com recursos levantados pelos próprios partidos.
Só que, no Brasil, o dinheiro público não é tratado com respeito e parece existir para servir a interesses dos políticos. Na terça-feira passada, portanto, eles resolveram puxar o valor de R$ 1 bilhão inicialmente oferecido pelo governo para R$ 4,9 bilhões — e muita gente já comenta que o número pode aumentar ainda mais até o final do ano.
Pontes e escolas
Suas Excelências mexeram na proposta do Ministério do Planejamento para dizer de onde sairá o dinheiro que financiará suas campanhas. A conta é simples. R$ 1 bilhão já estava reservado na proposta inicial. Outros R$ 2,9 bilhões sairão, segundo o deputado Isnaldo Bulhões (MDB), relator da matéria que trata do Fundão Eleitoral, virá do valor que estava reservado para as chamadas “emendas de bancada” . Outra parte, R$ 1 bilhão, sairá dos recursos que seriam reservados para as chamadas “despesas discricionárias” do governo.
Ou seja, uma parte dos recursos minguados que o orçamento federal reserva para o Executivo gastar de acordo com suas prioridades ajudará a alimentar o Fundão e será torrada no financiamento das campanhas eleitorais. Ou seja, recursos que deveriam ser utilizados para a construção de hospitais, para a reforma de escolas, para a construção de pontes e para o recapeamento das estradas federais será entregue aos partidos e utilizados nas campanhas de políticos que prometerão construir hospitais, reformar escolas, construir pontes e recapear estradas federais. Faz sentido?
Não! Não faz o menor sentido. Mas, no Brasil, situações como essa acabam sendo consideradas normais diante dos absurdos recorrentes que se vê no uso do dinheiro público. Detalhe: o pedido de elevação dos recursos que o governo pretendia gastar com o financiamento do Fundão eleitoral contou com apoio, inclusive, dos parlamentares do próprio partido do governo. Não houve objeções. Aliás, o barulho gerado pelos atritos entre a esquerda e a direita em torno de qualquer política pública proposta pelo governo se transforma num silêncio eloquente quando se trata de assegurar acesso aos recursos públicos destinados aos próprios políticos.
Isso parece estar no DNA dos políticos brasileiros. Assim como os deputados da base bolsonarista mantiveram silêncio em torno desse assunto na administração passada, nunca, jamais, em tempo algum se ouviu de alguém da bancada do PT qualquer crítica sincera ao uso de dinheiro público para alimentar o Fundão Eleitoral. Também não se costumam ouvir críticas ao chamado Fundo Partidário — dinheiro destinado a manter as máquinas partidárias em funcionamento.
Detalhe: o valor do Fundo Partidário também não é modesto. A verba que o orçamento deste ano reservava para essa rubrica era de R$ 1,33 bilhão. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a vetar uma medida que elevava este valor em mais R$ 164 milhões. Em junho passado, no entanto, o Congresso derrubou o veto e elevou o Fundo Partidário para quase R$ 1,5 bilhão.
Assim como acontece com os recursos do Fundão Eleitoral, esse dinheiro é distribuído às legendas de acordo com o tamanho das bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados nas eleições, no caso da atual legislatura, de 2022. O maior beneficiário do dinheiro é o PL, que elegeu 99 deputados, seguido pelo PT, com 68. Em seguida vem o União Brasil, que fez 59 cadeiras, o PP, com 47 e o MDB, com 42.
Flotilha pró-Hamas
É triste. A verdade, porém, é que o parlamento brasileiro tem dado seguidas demonstrações de fragilidade institucional em pontos sensíveis — como é o caso do zelo pelo dinheiro do povo. Ao mesmo tempo, ele investe uma energia descomunal em questões das quais, a rigor, nem deveria estar tratando.
Na sessão de terça-feira passada, por exemplo, o deputado Glauber Braga (PSOL) usou a tribuna da Casa para “denunciar” que, a bordo de um dos barcos da flotilha de militantes de esquerda que navegava em direção à Faixa de Gaza havia uma deputada brasileira — e que ela estava sob ameaça do governo de Israel.
Foi depois dessa “denúncia” que a maioria dos brasileiros ouviu falar pela primeira vez da deputada Luiziane Lins (PT), que deixou suas atividades no Brasil para embarcar no cruzeiro que cruzou as águas calmas do mar Mediterrâneo neste início de outono no hemisfério Norte, a pretexto de levar “ajuda humanitária” para a população de Gaza. Os militantes sabiam desde o primeiro momento que seriam impedidos pela marinha israelense de chegar a seu destino. Sabiam, da mesma forma, que seriam detidos e, depois, devolvidos a seus países. E, principalmente, sabiam que não corriam risco de sofrer agressões nem de perder a vida nas mãos das Forças de Defesa de Israel.
Foi exatamente o que aconteceu — mas a detenção da flotilha de apoio aos terroristas do Hamas vem sedo utilizada desde então como peça da propaganda insistente dos que tentam negar a Israel o direito de se defender.
O deputado Hugo Motta (Republicanos), que disse ter concedido à deputada licença para viajar e embarcar num dos barcos da flotilha “humanitária” — nos quais, segundo as autoridades de Israel, não havia sequer um quilo de alimentos destinado ao povo palestino. Motta também telefonou para o chanceler Mauro Vieira e pediu que o governo brasileiro intercedesse junto ao governo de Jerusalém para libertar a deputada e mais uma dúzia de brasileiros que embarcaram na aventura.
Talvez não soubesse que a interlocução de Vieira e do Itamaraty com o governo israelense é a pior possível e que a relação entre os dois países foi rebaixada por Israel ao nível de mera formalidade desde que o Itamaraty, por ordem do chanceler de facto, Celso Amorim, se recusou a receber as credenciais do diplomata Gali Dagan — indicado por seu país para a embaixada em Brasília.
O incidente com a flotilha, como era de se esperar, inflamou a veia antissemita que tem predominado na diplomacia brasileira em tempos recentes. É lamentável. Enquanto a parcialidade do governo brasileiro o excluiu das negociações do acordo proposto por Donald Trump que, neste momento, acontecem no Oriente Médio e podem, finalmente, levar à libertação dos últimos reféns em poder dos terroristas e ao fim dos conflitos, a militância continua alimentando o ódio a Israel — atitude que diz mais sobre os que acusam Israel de cometer violência do que sobre o país a quem pretendem negar o direito de se defender e até mesmo de existir.
Fonte: ULTIMOSEGUNDO.IG.COM.BR